domingo, 11 de março de 2012

Setor Público Prepara Convergência

Principais dificuldades para alinhar a contabilidade pública aos padrões internacionais estão na falta de pessoal qualificado e de investimentos dos estados e municípios em sistemas de TI.
O Brasil avança no caminho da consolidação e aperfeiçoamento da estabilidade e do crescimento sustentável. A partir de 2012, mais um passo será dado nesse sentido, com a adoção das Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicada ao Setor Público por parte da União, dos Estados e do Distrito Federal. Os municípios farão a transição em 2013. A implantação do novo modelo de contabilidade, que dará início à convergência do setor público aos padrões internacionais, será um grande desafio para os governos e para toda a sociedade brasileira.
Apesar dos imensos impactos positivos que essa convergência trará, é preciso reconhecer que as dificuldades a serem superadas para sua implantação e consolidação não são poucas. A mudança de cultura por parte da administração pública é um dos principais entraves, na avaliação de Paulo Henrique Feijó, analista de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Ele explica que há no setor público, de modo geral, o hábito de não segregar os fatos orçamentários dos patrimoniais, ou seja, de não registrar alguns fenômenos essencialmente econômicos, como a depreciação. Como primeiro passo para viabilizar a convergência, a STN e o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) se esforçam para prover capacitação e formação de multiplicadores do novo modelo de contabilidade, com o objetivo de que haja mais profissionais capazes de disseminar as novas regras. “Sabe-se que toda mudança de cultura leva mais tempo, mas quando ela é apoiada em sistemas informatizados, pode ser mais bem conduzida”, diz Feijó.
Essa é justamente uma das dificuldades. Segundo uma pesquisa feita pelo CFC, em parceria com a STN, entre os responsáveis técnicos pela implantação das normas nos estados e municípios, são essenciais duas questões: a tecnologia de informação (TI) e o capital intelectual. Com relação à primeira, constatou-se a falta de investimento dos estados e municípios em sistemas de informação e em ferramentas da informática. “Essas deficiências precisam ser superadas por meio da conscientização dos gestores de que o controle do patrimônio público é fundamental para o gerenciamento eficiente dos recursos públicos”, avalia Verônica Souto Maior, conselheira e membro da Câmara Técnica do CFC e coordenadora geral do Grupo de Trabalho do Comitê Gestor da Convergência Brasil.
Ela cita como exemplo de deficiência o fato de a aplicação do princípio de competência para a receita pública estar mobilizando – e desafiando – os órgãos arrecadadores nos três níveis de governo. “Não se sabe, nem na União, nem nos estados e tampouco nos municípios, qual é o valor do crédito tributário dos entes”, diz Verônica. “Estamos discutindo cortes de R$ 50 bilhões no Orçamento da União, quando se perdem trilhões em tributos que não são controlados ou créditos que não são cobrados”, completa ela. “Hoje, uma pergunta de fácil resposta é: qual o valor do crédito da União decorrente do “Refis da crise” que foi realizado em 2009?”. “Não se sabe o valor do crédito, nem os contribuintes são mobilizados para responder a determinados desafios, em função da falta de uma contabilidade que funcione como ferramenta gerencial e garanta, na ponta, níveis de eficácia, cujo resultado ainda é desconhecido pela maioria dos gestores públicos”, diz Verônica. A conclusão é que as soluções continuam sendo as mesmas, para os velhos e novos problemas, e o país se vê privado de investimentos em função de cortes de gastos e da elevação da carga tributária.

Capital Intelectual

Quanto ao capital intelectual, a pesquisa revela os contrastes da educação brasileira. Há ilhas de excelência, como a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), e alguns estados onde as coisas já estão bem avançadas, como Santa Catarina. Mas o levantamento também mostra que em certos municípios não há sequer um contador; o atendimento é de responsabilidade de empresas de serviços contábeis terceirizadas. Para alterar esse cenário, vários estados e municípios têm instituído grupos de trabalho técnicos visando discutir a solução de forma conjunta. Isso porque, além da área contábil, o que se constata é que faltam informações e controles internos na administração pública. Sem esses dois pré-requisitos, o prejuízo gerencial e material é imenso.
Muita cosia, contudo, já vem sendo feita para mudar essa realidade. “Estamos realizando vários cursos e treinamentos, nas modalidades presencial e à distância, para a formação dessa mão de obra. É importante notar que já existe material disponível de excelente qualidade, como os Manuais de Contabilidade Aplicada ao Setor Público publicados pela STN e elaborados em parceria com o CFC”, diz Verônica. “Percebemos que o desafio não é ensinar contabilidade, mas, sim, ter informação sobre o patrimônio público. Dessa forma, a sociedade perceberá que a contabilidade é um dos maiores instrumentos do controle social e da tão almejada transparência pública”, arremata a coordenadora.
Na avaliação de Paulo Feijó, é provável que os municípios enfrentem menos problemas que os estados e a União no processo de convergência da contabilidade, uma vez que terão de adquirir seus sistemas ou mesmo contratar um escritório de contabilidade que utilize um sistema adaptado. E que, por sua vez, atenda a vários municípios. “No caso de estados e da União, em sua maioria, eles contam com sistemas desenvolvidos em plataformas tecnológicas muito antigas; por isso, praticamente terão de refazer tudo”, diz Feijó. Ademais, foi criado pela STN o Grupo Técnico de Sistematização para discutir essas regras com os demais agentes que, direta ou indiretamente, serão afetados pelas novas regras contábeis.

Transparência

Mas qual é a importância dessa convergência da contabilidade pública ao padrão internacional, a exemplo do que as empresas privadas fizeram ao adotar normas inspiradas nas IFRS? Sabemos que o setor privado prima pela eficiência na aplicação dos recursos dada a competitividade natural entre as empresas. Para empresa privada, é obrigação fazer com excelência o controle patrimonial, apropriando o consumo de patrimônio aos processos e resultados. “Já o setor público, por sua natureza, visa atender às demandas da sociedade, e não obter lucro”, diz Paulo Feijó. “Contudo, em um contexto de escassez de recursos frente às necessidades sociais, gerir o patrimônio público com base nas melhores práticas existentes faz com que seja possível apurar os custos da prestação de serviços públicos, base para comparabilidade dos processos entre diferentes gestões”, continua.  Isso permite melhorar a eficiência na alocação de recursos públicos, promovendo, inclusive, a adoção de práticas que permitam mais ações públicas com menos recursos.
Feijó acrescenta que, com a incorporação de dimensões patrimoniais a partir das novas regras contábeis, a sociedade poderá visualizar, nas demonstrações contábeis, todos os ativos e passivos do setor público. E, portanto, o valor do patrimônio público e suas variações. “O orçamento apresenta uma visão de curto prazo, apenas para o exercício financeiro e muito relacionada com o fluxo de caixa do setor público. Ou seja, com os ingressos (arrecadação) e os gastos (despesas), não permitindo a visualização dos reflexos sobre o patrimônio”, analisa. Entre os valores arrecadados pelo governo se incluem receitas de endividamento (operações de crédito), que geram passivos para o setor público e deverão ser pagas em algum momento, com recursos da sociedade. “Se a sociedade não conhecer o tamanho desse passivo gerado pelo governante, não poderá ter uma dimensão dos riscos fiscais que estão sendo gerados”, diz Feijó. Para Verônica Souto Maior, é mais importante a eficiência do gasto público e da arrecadação, “já que não temos como dimensionar e mensurar o que se perde na administração pública brasileira, e isso tem reflexos em todos os setores da economia. Esses reflexos incluem a falta de recursos para os investimentos necessários e o combate aos níveis de pobreza, a elevação da carga tributária e do “custo Brasil”, analisa. Sem um modelo contábil, ela acredita, “o país se distancia do seu objetivo maior de desenvolvimento e de ocupar espaços no cenário internacional”.
As novas regras uniformizam, até determinado nível, as formas de registro contábil do setor público.  Desse modo, a Federação passará a falar uma única língua contábil, facilitando o entendimento das formas de registro dos atos e fatos do cotidiano da gestão pública – sempre com a preocupação de que se registrem todos os ativos e passivos e não apenas o que ingressou e saiu do caixa. “A padronização permitirá à sociedade comparar demonstrações contábeis de todos os entes (União, estados e municípios). E isso, juntamente com o processo de transparência das contas públicas, possibilitará à sociedade organizada (sindicatos, ONGs, agências) avaliar melhor a gestão dos governantes”, analista Feijó. Ele enfatiza que ações de transparência e evidenciação do patrimônio  e suas variações são, por sua própria natureza, inibidoras de processos de corrupção, embora não tenham o condão de impedir a corrupção em si.
“As possibilidades de a contabilidade ser utilizada como instrumentalização do controle social e de combate à corrupção são muito maiores do que supõe nossa vã filosofia”, diz Verônica Souto Maior, parafraseando o dramaturgo inglês William Shakespeare. Ela cita como exemplo experiências exitosas: os portais de transparência que já informam os gastos orçamentários e os repasses da União para os estados e municípios. Organizações como a Transparência Brasil e outras tantas têm conseguido monitorar os recursos e sua aplicação no objetivo final dos programas. Nos últimos dez anos, apenas essa informação possibilitou a redução de mais de 50% de desvios de recursos, como apontam os órgãos de controle externo. A conselheira do CFC acredita que outro desafio significativo é melhorar a qualidade da informação. “Afirmarmos que o município ‘A’ gasta R$ 100 mil na merenda escolar pode não ser útil para o controle social, mas se dissermos a qualquer mãe de aluno que o arroz ou a carne servida na merenda foram comprados pelo preço ‘X’, ela saberá de imediato se houve ou não eficiência no gasto público e poderá controlar melhor o esforço da sociedade na gestão dos recursos públicos.”
O papel das contadorias é fundamental nesse processo de convergência, pois elas devem ter a consciência de que a valorização e o reconhecimento contábil pela sociedade passam pela importância do seu trabalho, tanto no aspecto individual como no coletivo. “Acreditamos que a melhor forma de contribuição que o setor privado pode ofertar ao setor público é demonstrando um padrão de informação adequado e nos níveis internacionais, como já vem ocorrendo no Brasil. E, a partir daí, cobrar que o setor público faça sua parte para reduzir o sacrifício da sociedade e das empresas na construção de um país desenvolvido e mais justo socialmente”, diz Verônica.

Fonte: Revista Transparência IBRACON Abril - Junho 2011

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