terça-feira, 23 de setembro de 2014

QUE TIPO DE CONTROLE NÓS QUEREMOS?




No Brasil, a avaliação dos gestores públicos (chefes do poder executivo, ministros, secretários estaduais e municipais, mesas das assembleias legislativas e câmaras de vereadores e outros) foi entregue aos tribunais de contas e às controladorias. Essa avaliação é realizada anualmente, fazendo-se um paralelo entre o que o gestor fez e o que estava previsto para ele fazer (na lei e nos regulamentos). Se o que ele fez não estava de acordo com a legislação, suas contas são reprovadas; caso contrário, elas são aprovadas. Em síntese, é dessa forma que são avaliados os administradores públicos em nosso País.
 
A prática reflete o que os juristas chamam de princípio da legalidade. Se o gestor público age dentro da lei, então sua nota de avaliação será positiva. Se, todavia, não cumpre o que a legislação determina, então ele será mal avaliado. Entretanto, um exímio cumpridor da lei nem sempre merece ser bem avaliado. Parece contraditória essa afirmação, mas na verdade não é.
 
O que tenho visto nessa minha caminhada – lido com contas públicas há 21 anos -  é que existe uma enorme diferença entre cumprir a legislação e atender às necessidades das pessoas. Não basta cumprir o que a lei e a ordem determinam. A excelência na prestação dos serviços públicos exige muito mais do que a pura e simples observação de um legalismo. A prestação dos serviços de saúde é um bom exemplo dessa realidade.
 
Algumas vezes, temos nos deparado com procedimentos licitatórios impecáveis. Tudo foi feito de acordo com a lei e os regramentos. Tudo como manda o figurino. Mas a realidade dos hospitais públicos e dos postos de saúde é algo bem diferente disso. Há falta de medicamentos por toda parte. E olha que não é porque não havia dinheiro para comprá-los. Os recursos existem. A legislação nacional fixa, inclusive, um piso para garantir um mínimo de recursos aplicados na saúde.  Nada obstante, quem procura os serviços médicos e ambulatoriais repetidas vezes queixa-se da falta de medicamentos. O  problema é que esse não é o único problema. Há reclamações de toda ordem:  a recepcionista que não deu a atenção devida, o médico que sequer olhou para o seu paciente, o curativo que foi mal feito, a assistente social que deixou muito a desejar, a ambulância que não chegou no momento oportuno. Enfim, são incontáveis as queixas relacionadas à prestação dos serviços de saúde.
 
O mesmo acontece com a merenda escolar. Há escolas públicas que mandam os alunos mais cedo pra casa porque não têm sequer um pacote de biscoito para eles enganarem o estômago.  Resultado: compromete-se toda uma carga horária mínima anual que deveria ser gasta com educação. Isso tudo sem falar no sofrível conteúdo programático dado em sala de aula, fruto de professores mal assistidos, que se queixam (com razão) de um salário crítico e que os leva a fazerem verdadeiros malabarismos para sobreviverem, como dar aulas diariamente nos três turnos. Realmente, não dá para falar em qualidade na educação nesse País diante de um quadro como esse.  
 
Estamos nos referindo a uma dimensão da gestão pública brasileira que passa ao largo da avaliação dos tribunais de contas e das controladorias. E essa dimensão tem nome. Chama-se EFETIVIDADE. A efetividade é, portanto, a capacidade de os gestores públicos atenderem, em qualidade e quantidade, às necessidades de seus cidadãos. Ela escapa da peneira da legalidade. É por isso que há contas aprovadas convivendo com péssimas prestações de serviços públicos. O gestor público passou de ano, mas deixou (muito) a desejar. Não foi o aluno dedicado e comprometido que se esperava. Ao contrário. Foi negligente. Não “vestiu a camisa”. Basta que passemos os olhos ao nosso redor para percebermos sinais dessa conduta: o terminal pesqueiro recém-inaugurado mas que não funciona, o tapa-buraco das vias públicas que dura apenas um verão, a iluminação pública que não chegou, o lixo que não é recolhido há meses, etc. Não faltam exemplos dessa realidade em nosso País.
 
Ou seja, a avaliação realizada pelos órgãos responsáveis pelo controle dos gastos públicos no Brasil leva em consideração apenas um aspecto – o da legalidade – deixando de lado variáveis tão ou mais importantes que ela, que certamente contribuiriam (e muito) para elevar a qualidade dos serviços públicos. Não se leva em conta o desempenho da gestão governamental. E isso é lamentável. 
 
No mundo, as grandes corporações de controle dos governos costumam dedicar um capítulo especial à efetividade das ações governamentais. Desde os anos 60 o U. S. Government Accountability Office, o órgão de controle dos EUA, realiza auditorias de desempenho dos gastos públicos americanos. Também a Australian National Audit Office e a National Audit Office, órgãos de controle, respectivamente, da Austrália e do Reino Unido, também se debruçam sobre como seus governos gastam os recursos dos cidadãos sob o prisma da efetividade. Mas se percorrermos o mundo veremos que há inúmeros outros  órgãos de controle espalhados pelos quatro cantos do planeta que  também já adotaram essa postura. 
 
No Brasil, iniciativas pioneiras nesse sentido coube ao Tribunal de Contas da União na segunda metade dos anos 90. De lá para cá os conhecimentos têm sido disseminados entre os tribunais de contas estaduais, além de consolidados no próprio TCU, mas ainda são muito incipientes.
 
Nada obstante seu inegável valor e utilidade, as auditorias de desempenho  ainda não podem servir como parâmetro para a avaliação das contas anuais entre nós. O atual modelo constitucional não permite. Ele ainda privilegia o critério da legalidade, juntamente com mais duas outras dimensões: o da legitimidade e o da economicidade. A legitimidade do ato de gestão, contudo, é um conceito difícil de ser aferido, inclusive entre os especialistas. Por isso, quase não é invocado nos julgamentos das contas públicas. O mesmo acontece com a economicidade que, muito embora seja um conceito mais fácil de ser assimilado, historicamente não costuma compor a pauta dos julgamentos.
 
Houve, inclusive, um Ministro do TCU, já aposentado, que era contra a realização dessas auditorias porque, além de consumirem muito tempo na sua realização, seus resultados não poderiam ser considerados no processo de julgamento das prestações de contas.
 
Por tudo o que aqui foi dito, não tenho dúvida que há uma grande lacuna no processo de avaliação das contas públicas no Brasil. Contentamo-nos com julgamentos burocráticos, pautados quase que exclusivamente em papéis, documentos e processos. Rubricas contábeis, financeiras e orçamentárias ainda ditam as regras dos julgamentos. A forma ainda prevalece sobre a essência. Enquanto isso, a população vai sofreno os revezes de uma prestação de serviços acanhada, tímida e altamente limitada. Não há preocupação nenhuma com a satisfação do cliente. Resta o questionamento: que tipo de controle, então, nós queremos?     
 
ALIPIO REIS FIRMO FILHO
Conselheiro Substituto/TCE-AM

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